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O blog do Fi

um português em Berlim

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Quando o bullying homofóbico destrói

Filipe B., 16.03.17


Este é um excerto do Deixa-me ser, o livro biográfico que conta toda a atribulada história do meu coming out

Este texto foi lido em todas as apresentações que passaram pelo Porto, Leiria, Torres Novas, Tomar, Covilhã e Lisboa. Escolhi-o sempre para ser lido em voz alta porque é dos meus momentos preferidos do livro, mas é provavelmente também aquele que mais me custou escrever.  Hoje partilho-o pela primeira vez online, como forma de alerta para algo que destrói, que corrompe e mata: o bullying.



"Verão, 2014.
    
         A cidade onde nasci tem um castelo. Lá no alto de uma colina de Torres Novas erguia-se a majestosa construção aos meus olhos desatentos. O olhar caía-me ali mas os pensamentos estavam em plena viagem temporal pelos caminhos da minha infância. O café arrefecia-me e o gás de uma água já morna desfazia-se por entre o seu lento borbulhar. Viajava. Estava ali, fisicamente, mas o meu espírito cedia a outro daqueles momentos em que as memórias se intensificavam, como certezas de que nada vivido poderia ser completamente esquecido, como um chamar dos ensinamentos que a bem ou a mal tinha adquirido. 
        Nessa tórrida tarde de Agosto a  máquina do tempo decidiu-se a parar algures nos 90, na época em que era ainda um rapazinho. Ia a esse pedaço de recordação mais vezes do que quereria e, uma vez estando lá, não tinha como fugir-lhe. Por isso, cerrando as pálpebras e suspirando, deixei-me viver novamente aquele trauma. Eles eram uns quatro ou cinco e rodeavam-me, mais velhos do que eu, mais fortes e com mais certezas de como devia ser a vida. Eu era um miúdo, fraco de corpo, incapaz de integrar-me nos seus modos, por isso atiraram-me para o chão e ameaçaram pontapear-me. Um deles, nem sei já quem, fez sinal para que parassem a violência explícita, para que avançassem apenas com as palavras, como se estas magoassem menos.
        'Gay!'
        'Maricas!'
        'Menina!'
        Chamaram. Repetiram.  Tornaram a chamar.
E depois o meu quarto, as paredes fechadas sobre mim, e uma criança que chora sozinha. Nem entendia porquê, que mal tinha feito ao ser diferente. E ganhava agora vergonha, tornando-me indefeso, impossibilitado de levantar-me e falar com um adulto sobre isso. Dentro de mim havia medo, apenas medo. Provavelmente se falasse com os meus pais, iriam até dar-lhes razão, se era assim o mundo dos grandes, se era só eu quem não sabia expressar-me como eles esperavam, se era eu quem queria brincar com o que não devia e não tinha pudor em tocar nos brinquedos das meninas e torná-los parte dos seus mundos inventados. 
       Palavras, palavras. Não machucavam, pensavam eles. Palavras, palavras. Seriam suficientes para mudar-me, queriam eles. E estas ecoavam, esmurravam-me, atiravam-me ao chão vezes e vezes sem conta. E mesmo quando queria deixar de as ouvir, elas lá estavam graves e agudas, a baixo som, em gritaria, escritas, faladas, em todos os modos e feitios. Então descobri, escreveria. Se não as podia vencer, podia usá-las a meu favor. Até podia transformá-las, inventar-lhes interpretações, torná-las secretas em algum diário que só eu saberia ler. Bastava-me uma caneta e um pedaço de papel. Escrevia, escrevia, e escrevendo fui sonhando. Haveria um lugar para mim nesse mundo em que uma maioria tinha escolhido odiar quem não tinha alguma vez optado por nascer assim numa qualquer oposição do normal. Senti que descobriria alguém que me amasse, que brincasse comigo, que não perguntasse porque era assim, que só quisesse um amigo sem se interessar tanto porque seria ele desigual. 
     E encontrei. Foi exactamente ao recordar os amigos que tinha feito ao longo de tantos anos que aquela lágrima escorreu pela minha face com a mescla de mágoa e alegria de quem não podia apagar o passado e de quem agradecia pelo seu presente. Essa mesma gotícula  carregava em si tantos significados que num só momento ser-me-ia impossível decifrar toda a sua importância, o que levou a que mais uma vez fechasse aquela porta, até lá regressar um dia. Fi-lo hoje, voltei lá com toda a minha força, ao querer, neste último capítulo da história que te vim contar, uma prova de que aquilo a que agora chamamos bullying sempre existiu, mesmo quando não sabíamos dar-lhe um nome inglês que lhe acentuasse a gravidade. Dessa opressão moral, praticada por quem nem sabia atribuir-lhe um valor, vários choros foram e são  derramados, vincando as faces com o peso de todas as injustiças que são ditas e proclamadas em nome de um sentimento que se alimenta do puro ódio de não entender o que não consegue ser igual ao estabelecido padrão."


Livro disponível aqui no Amazon
Página no facebook.


Registo da apresentação do livro na Covilhã, aqui rodeado de amigas que sempre me apoiaram em tudo.

[ opinião - cinema ] Moonlight

Filipe B., 20.01.17




"Moonlight narra a vida de um jovem negro desde a infância até à idade adulta, na luta para encontrar o seu lugar no mundo enquanto cresce num bairro problemático de Miami."

Primeiro devo admitir o seguinte. Não fazia a mínima ideia sobre o que tratava este filme. Não tinha visto o trailer, nem sequer lido a sinopse. Vi que tinha ganho o Globo de Ouro de Melhor Filme e foi o suficiente para me despertar a curiosidade. Acontece muitas vezes com outras obras, pois considero que quanto menos se souber do argumento, melhor. Quem já viu, poderá agora imaginar a surpresa que foi este para mim! 

O filme é dividido em 3 actos. O da infância, o da adolescência e o da idade adulta do personagem principal, Chiron. E é através da passagem do tempo entre esses 3 actos que vamos perceber a profunda reflexão que aqui se apresenta sobre os efeitos que certas acções têm no crescimento de uma criança, de um adolescente e finalmente de um jovem adulto. Não quero desvendar demais, para quem não viu, mas trata-se aqui de um brilhante exercício sobre o bullying.

Tal como o seu protagonista, que fala pouco, Moonlight perde pouco tempo com explicações demasiado óbvias, recorrendo mais aos artifícios da imagem e da banda-sonora para nos contar a arrebatadora história de Chiron.

E que banda-sonora! Esta não serve apenas para encher as cenas, mas está sim carregada de significado, que traz mais peso à já pesada história que nos é mostrada de forma magistral através de imagens que respiram fortemente aquela magia rara da sétima arte. 

Prémios à parte, e mesmo com a possibilidade de ganhar um Oscar, penso que o grande trunfo deste filme é mesmo o de deixar-nos a reflectir fortemente enquanto os créditos finais correm. Poderoso, provocador e impactante, Moonlight dificilmente deixará alguém indiferente. 


Estamos perante uma obra-prima do cinema actual?