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O blog do Fi

um português em Berlim

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O abismo

Filipe B., 23.12.20

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Tinha sido um dia completamente normal. Tinha passado uma bela tarde de Verão com alguns amigos no parque. Regressei a casa de noite, não muito tarde. Ia dormir e até já estava a sentir qualquer coisa estranha em mim, mas foi no exacto momento em que abri a cama, para me deitar, que vieram os tremores, o aperto no peito, a sensação de não controlar nada e acima de tudo o ver-me diante do abismo, um precipício tão fundo e o meu corpo ali suspenso... e inexplicavelmente um medo tão angustiante como nunca antes tinha sentido: o medo de morrer. Foi aí que soube o que estava a acontecer.

Tinha-os estudado muitas vezes: os sintomas. Tinha-os decorado para o meu trabalho, não só porque estes saíam nos exames de primeiros socorros, mas porque a qualquer momento algum passageiro poderia passar por isso e eu teria que saber responder. Mas foi em mim que o vivenciei pela primeira vez. 

Foi aí que soube o que era, realmente e na sua totalidade, um ataque de pânico.

E é horrível. Não há outra palavra. É uma sensanção horrível. 

Deixei-me ficar até aquela sensação desaparecer. Pensei em algo positivo, algo bom que tivesse onde me agarrar e nem me lembro de adormecer ou se sequer cheguei realmente a dormir.

No dia seguinte estava já a marcar uma nova consulta com uma terapeuta. 

Anos depois, tantos anos depois, voltaria sentar-me com uma psicóloga. E é por isso que aqui venho escrever isto hoje.

Porque o estigma existe, porque o medo de falar destas coisas não nos deixa abrir e conversar sobre elas. 

Nunca tinha tido um ataque de pânico, mas não me admirou que este viesse, por tudo o que este 2020 me fez e nos fez passar. 

No meu caso, o medo constante da perda de trabalho (que até já relatei aqui ), os números, os números, as constantes alterações à nossa vida social, e os números, os números, o receio de apanhar esse vírus que anda à solta (e que por acaso depois até entrou em minha casa, também já aqui vos contei sobre isso), e os números, os números novamente, o afastamento da família, dos amigos... enfim... da vida normal ou banal que levei anos a construir e que noutras sessões de terapia aprendi a ter como meu porto seguro. 

Acontece que essa segurança desvaneceu-se quase por completo este ano. Tive que a reencontrar... e por vezes até reconstruir. 

E embora não me tenha surpreendido este ataque, surpreendeu-me mais ter acontecido num dia que até foi um dia feliz, em que nada de extraordinário aconteceu. 

Terá sido essa ilusão de ter tido nesse dia um dia semelhante à vida pré-covid que me levou ali ao abismo? Terá sido essa falsa impressão de conforto que me levou ao medo de perder tudo outra vez?

Talvez nunca encontre realmente as respostas a estas questões, mas elas ajudam-me a tentar entender o que se passou... e o que poderá voltar a passar por aqui.

Embora ache que nunca se falou tanto de saúde mental, com tantas campanhas e divulgação, e sobretudo num ano que mudou todas as regras do jogo e nos obrigou a olhar para dentro de nós próprios e levantar tantas questões, mais uma vez deixo um apelo.

Falem destes asssuntos, deixem-se a vocês próprios e aos que vos rodeiam suficientemente à vontade para não se sentirem julgados por precisarem de ajuda e terapia.

Por cá continuarei a minha luta, por vezes só (que também se faz), por vezes escrevendo para vocês aqui, por vezes falando com os meus, por vezes naquela sala em que me sento só eu e a minha terapeuta e o abismo se abre mais uma vez profunda e continuamente, só que não para o mal, mas para o bem. 

2 comentários

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    Filipe B. 29.12.2020

    Fico feliz por saber que gostou desta minha reflexão. Obrigado pelo comentário. :)
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