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O blog do Fi

um português em Berlim

O blog do Fi

um português em Berlim

Começa em C e acaba em O

Filipe B., 20.02.16


Terça-feira.

Um dia qualquer numa semana ao acaso. Igual à terça dasemana anterior. Um número num calendário que se arrastava sem grandesalaridos.

Mas aquela manhã era diferente.

As notícias mais recentes não eram muito positivas. O meupai tinha um problema.
A sua saúde fraquejava.

Mas não era um problema qualquer. Aliás, antes dessa terça,não era sequer uma certeza. Era apenas um medo sufocante de que a palavra quecomeçava em C e acabava em O entrasse de repente por dentro, sem pedir licença,derrubando tudo à sua passagem, deitando por terra as paredes do nosso larsagrado.

Seria possível que algo nos invadisse assim?

Os primeiros exames apontavam para isso. Mas faltava aderradeira confirmação.

Eu já sabia. A mãe também. O olhar esquivo da minha irmãdizia-me o mesmo. E quando a minha avó pediu para eu ter muita força para o queestaria para vir, eu sabia.

Sabíamos todos.

E foi  por isso quenessa madrugada quase não dormi. Nessa manhã acordei cedo, mas não fui com opai até ao hospital para saber a verdade. Tinha que ficar. E como não tinhadescansado, arrastei-me pela manhã fora como pude.
Sem novidades. Ansioso. Sem um telefonema. Nervoso. Sem umamensagem.

Liguei. Continuavam à espera. Tornei a ligar. A esperavaprolongava-se.

E esperando, deitei-me na minha cama e cedi ao cansaço desgastante. Adormeci, se é que se pode chamar assim ao estado em que os meuspensamentos eram mais sonhos que realidade.
Por uma terrível injustiça, tinha aguentado a manhã toda,menos nos últimos momentos. E quando os meus pais chegaram a casa, eu estavaadormentado, meio esquecido do mundo. No meu canto, onde ainda residia algumaesperança.

Assim, foi num estado inconsciente que senti a porta do meuquarto abrir-se lentamente, ouvindo depois a voz do meu pai dizer “Entãofilhote... estás a dormir?”. Ele não disse mais nada. Mas a voz tremia-lhe, saía-lhesem força. 

Enquanto ansiava pela sua chegada, pouco antes de adormecernaqueles instante, eu imaginei que talvez pudesse não ser nada, que poderíamosestar todos apenas a ver o lado negativo.

Mas agora, de repente, como que a torturar-me por terpensado assim, a sua voz dizia-me tudo. Não foi preciso ouvir aquela horrívelpalavra. Soube assim. 
Era verdade. Tínhamos razão. E eu pensava que estavapreparado. Mas estava tão enganado. Ainda esperando algum escape, forcei aminha cabeça contra a almofada, esperei despertar de algum pesadelo. Mas semefeito, era real.

Não chorei em frente ao pai. Abracei-o e não disse nada,pois se falasse não aguentaria. Cairia tudo.
Depois encontrei-me sozinho, saí de casa e procurei um sítiosó meu. Subitamente senti-me mais pesado, como se a gravidade me puxasse mais contra aterra, sem conseguir expressar-me, rendido a uma sensação de fraqueza tãointensa como a vontade que tinha de gritar.
E no fundo, bem lá no fundo, gritei. E ninguém me diga queos nossos gritos mudos não conseguem fazer-se ouvir cá fora, pois conseguem, ede que maneira!

Até essa terça eu nunca tinha sentido tanto medo de perderalguém que amava. Esse pensamento tinha-me passado pela mente algumas vezes.Dava-me sempre arrepios.
Mas foi nesse dia que aprendi que ao tornar-se real, o medodá-nos um propósito.
Não tínhamos como escapar. Uma doença assim era uma doençaassim. Era impossível escolher-se entre enfrentá-la ou não.
E havia uma luta para começar.


Nesse mesmo dia jurei que não escreveria essa palavra. Nãolhe daria esse gozo; não a essa palavra que parece matar só de se pronunciar.

E assim fomos todos à luta. E lutámos por tudo, juntos.Nunca foi fácil. Mas nem eu esperava que fosse. E mesmo assim eu nunca disse ouescrevi essa palavra.
No dia em que fomos ao hospital saber que podíamos enfimrespirar de alívio, vi a face do meu pai transformar-se completamente. A angústia,o peso e a ansiedade deram lugar a um respirar tão calmo e sereno, de olhosbrilhantes de alívio.

E nem assim eu consegui processar o sentimento e colocá-loem palavras. Apenas sorri, ao mesmo tempo em que o abracei com toda a minhaForça. Foi, sem precisar de grande justificação, um dos momentos mais felizesda minha vida.

Só 6 meses depois consegui falar de tudo isto com o meu pai.E mesmo assim ainda fraquejei quando tentei formular uma pequena frase sobre o assunto. Foi no último dia do ano, a poucos minutos de fazer a passagem e deixarpara trás de vez aqueles dias. “Que grande luta tivemos este ano. E agoraestamos aqui!”.

E depois de o dizer, abraçamo-nos os três. Eu, a mãe e opai. Estávamos ali.

Daquela palavra nem quero lembrar.

Ela ainda me assusta.

E há palavras bem mais bonitas que também começam em C eacabam em O.

Digamos, por exemplo:

coração.