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O blog do Fi

um português em Berlim

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BI – bilhete de identidade

Filipe B., 31.07.15


[ nota: isto não é um exercício jornalístico, nem o quer ser ]

Procurei, procurei. E não foi nada fácil encontrar alguém que estivesse disposto a falar comigo sobre sexualidade, muito menos sobre a bissexualidade. Teria que entrevistar alguém que não fosse meu conhecido, que nem fizesse parte do meu círculo. E num meio onde parecem imperar as palavras discrição e sigilo, foi mesmo complicado chegar a alguém que, sem grandes complexos, aceitasse falar desta orientação sexual. Mas lá consegui agendar uma conversa sobre isso, não sem algumas regras, como irão perceber. E foi assim: 

O local escolhido para nos encontrarmos é um dos cafés menos movimentados da cidade. Aentrevista não será gravada, não serão registadas imagens, ficando-me pelopapel e caneta como suporte. Por isso sento-me, cheguei mais cedo, e peçoapenas um café e uma água, para que me distraiam enquanto aguardo. Na verdade receio que não apareça, que ao último momento tenha desistido de dar esta entrevista. Mas... chega. Tem21 anos e um ar muito jovem, de facto, de quem poderia ter menos que isso. Masafinal tem “quase 22”, assegura-me, enquanto, numa espécie de quebra-gelo,começamos a falar de cinema. É o que estuda, na universidade. E tão naturalcomo começou, a conversa flui para a sua primeira declaração: “Quando disse aomeu pai ‘Sou bissexual’ ele só disse ‘Está bem’. E não sei se isso foi bom oumau, não sei se ele aceitou, porque ele quase nunca fala sobre isso”.
Perante isso, questiono: “Posso então começar a escrever?”.
Diz-me que sim, que posso escrever à vontade e continua como relato enquanto a minha caneta desliza pelo papel: “Tive uma relaçãoheterossexual. Quando a relação acabou, percebi a minha bissexualidade. Comeceia perceber que tinha algum género de atracção por rapazes, desde a adolescência.E costumo dizer que amo pessoas, independentemente do sexo”.

Perceber isso não terá sido, contudo, muito fácil, pois relembra um episódiograve dos tempos do secundário: “Quando andava na escola gozavam comigo,chamavam-me gay, mesmo antes de eu ter a minha sexualidade definida. Nuncatinha tido uma experiência com rapazes. Mas as pessoas olhavam para mim e viam algo de diferente na forma de eu sere de agir. Não tinha hábitos ‘normais’ de rapazes, como jogar futebol ou sairpara beber cervejas. E era mais sentimental, o que normalmente é mais associadoao sexo feminino. Por isso gozavam e até criaram um site para falarem da minhasexualidade. Não sei se ainda existe, nunca mais o procurei”.

“E talvez seja melhor não procurar”, penso para mim, sem overbalizar, enquanto lhe atiro a primeira questão que tinha preparada: “De umponto de vista muito pessoal, esquecendo todas as definições que existem, o queé para ti ser-se bissexual?”. A resposta é directa. “Ser bissexual é gostar depessoas. Como diz uma amiga minha: ‘Gosto de pessoas’. Claro que a atracçãofísica é muito importante. Mas há pessoas com quem te envolvespsicologicamente, em que por vezes pode até não passar de um ‘flirt’.”
Mas acrescenta, como que afastando-se daquilo a que chama“moda”, sublinhando que não se revê nisto: “Acho que muitas pessoas mais novasdizem que são bis porque acham que é cool, que assim se encaixam nos padrões dasociedade, mesmo sem saberem se são realmente assim. Muitos jovens dizem issoporque celebridades, como o Bill Kaulitz dos Tokio Hotel, também o disseram, eacabam por seguir isso como uma moda, e não como algo que sentem mesmo ser asua orientação sexual.”
Isso leva-me directamente à questão que tinha em espera:“Pensas que existe mais aceitação sobre a bi do que sobre a homossexualidade?”
“Acho que sim, porque as pessoas acham que é uma fase. Nãohá uma redução tão grande, como quando és gay. Aí as pessoas acham que é maisredutor, se és gay, és só aquilo, porque só gostas de homens. Na bissexualidadeacham que há um escape e que, por gostares de mulheres, vais sempre ter umavida mais normal, porque podes fugir para isso.”
Então será o estigma social maior na questão homossexual?
“Acho que é mais complicado assumires que és gay/lésbica doque bi. Mas há mais informação sobre a homossexualidade, nos média em geral” –responde prontamente.
Levanta-se uma questão que mutias pessoas querem sempre verrespondida:
“Como é que um bissexual consegue gerir ao mesmo tempo aatracção física pelos dois sexos?”, pergunto, assumindo que é a questão que melevanta mais curiosidade.
“Isso é tão complicado. Há coisas que atraem nos dois sexos.Por exemplo, sinto-me atraído pelos seios de uma mulher e um homem não temisso”
E há mais promiscuidade ou não? As pessoas bi são maistentadas a trair? Entende que não. E justifica. “A questão da traição dependemuito da pessoa e da sua satisfação na relação, não depende da orientaçãosexual.” Mas concorda que muitas pessoas não conseguem ver essa realidade damesma forma: “Muitas vezes as pessoas deixam de falar comigo porque sou bi. Porexemplo, alguns rapazes gay acham que sou indeciso por isso e deixam de mefalar. Mas não tem nada a ver com ser indeciso. Isso não me condiciona, masessas pessoas são retrógadas.”
Talvez isso justifique que muitas vezes se ouça dizer quedeterminada pessoa “diz que é bissexual para esconder a sua homossexualidade”.Discorda.  “De certeza que existempessoas a pensar assim, mas não concordo com isso. Podes ter uma relação 50anos com uma mulher e depois teres com um homem.”
E é, afinal, uma doença como afirma o preconceito... ou não?
“Não é uma doença, mas para algumas pessoas é, porque pensamque as pessoas LGBT não amam, que só querem sexo.”


Relembramos agora o tempo em que decidiu contar às pessoaspróximas de si aquilo que sentia: “Revelei primeiro à minha madastra, e decidicontar porque tive medo que alguém contasse primeiro do que eu. Na universidadealgumas pessoas já sabiam e não queria que em casa soubessem sem ser por mim.‘Se calhar é só uma fase’, foi a reacção dela. Disse-lhe que sabia que não erauma fase porque há muitos anos que já sentia pré-disposição para isso, apesarde não ter ainda experienciado. E expliquei que a parte cultural, uma conversa,um interesse, podiam justificar a minha atracção por rapazes.”
Tento aligeirar o tom da conversa e pergunto-lhe: “Setiveres uma namorada vais contar-lhe que és bi?”
“Para ter uma relação já tinha que haver muito à vontade,empatia. Não teria uma relação sem contar isso primeiro. Não acho que fossefácil para ela aceitar, porque destruiria algumas esperanças.”
A conversa segue o seu rumo natural e, quase sem darmosconta, o termo “relação aberta” está em cima da mesa.
Não tem grande convicção sobre o tema mas arrisca: “Acho queé possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Não sei até que ponto concordariacom uma relação aberta, mas acho que faz sentido. Um dos aspectos negativos, anível sentimental, é que haverá uma ruptura bastante grande. Acabarás semprepor magoar alguém, porque precisas de escapes psicológicos. Numa relação abertavais sempre procurar outros tipos de amor e carinho, mesmo que não haja umcontacto sexual. Pode haver só envolvimente intelectual.”

E o que pode ser feito para que haja mais aceitação nasociedade em geral?
“Haver mais abertura nas escolas, porque as crianças são ofuturo e podem ser educadas para isso. Acho que é preciso desconstruir oestereótipo do homossexual feminino e não generalizar essa ideia, como se temvisto em algumas telenovelas brasileiras, por exemplo. Se (as novelas) são um meio decultura em massa, podem também funcionar dessa forma.”
Antes de terminarmos confessa que sempre teve um parente homossexual na família e que por isso o assunto, apesar de visível, tornava-setabú. “Os meus pais pediam para não falar na homossexualidade em casa e paranão dizer ofensas sobre isso, mas só porque aquela pessoa estaria presente e nãogostaria de ouvir.” Em parte isso até pode justificar outra declaração sua:“Recebi mais ofensas antes de me assumir do que depois, porque parecia que aspessoas faziam de propósito para me picar e me levar a assumir aquilo que euera.”
Lembra ainda alguns “excessos”, que, na verdade,  só podem ser assim chamados pelo preconceito que ainda existe a nível social. Diz-me então sem medo: “Muitas vezes fui sair à noite e andava de mãos dadas na rua,com um rapaz, e as pessoas olhavam de lado. E vão sempre olhar.”
E é por isso que defende, levantando a maior contrariedade de que falamos até então: “Aceitaria sair com alguém maisvisível, um homossexual mais excêntrico, sim, apesar de ser discreto e depreferir não chamar à atenção, mas isso tem a ver mesmo com a minhapersonalidade.”
Quanto ao futuro, como estudante de cinema, está decidido a combater pela visibilidadedos temas LGBTI: “O meu trabalho final de curso será uma curta-metragem sobre atransexualidade, porque é um tema que me interessa bastante”.
Sorri ao dizê-lo, mesmo antes de eu fechar o caderno denotas; enquanto a palavra FIM surge vagamente entre nós, por entre os cafésbebidos, espalhados pela mesa.

E depressa voltamos a falar de filmes, se é que em algummomento deixamos de o fazer.


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