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O blog do Fi

um português em Berlim

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A aldeia

Filipe B., 29.01.21

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A vontade de escrever este texto veio-me enquanto comia uma azeitona.

Pode parecer algo estranho, mas acho que concordarão comigo se vos disser que os sabores e cheiros são das coisas que mais avivam a nossa memória... e as saudades. 

Acontece que essa não era uma azeitona qualquer, mas sim um dos frutos das oliveiras da fazenda da moita. Quando as colhi, no mês de Outubro passado, não imaginei que, ao trazê-las para Berlim, estaria a carregar comigo uma espécie de fruto mágico que me transportaria até ao meu lugar de origem.

Mas a verdade é que aquele sabor tão único, que só aquela terra lhes dá, foi o suficiente para me levar lá, mesmo que não tenha saído da minha actual cidade.

A aldeia onde eu cresci fica no sopé da Serra d'Aire. É um lugar pequeno, onde no Verão se levanta um vento tão forte que quase nos rebaixa, como se a imponência dos montes daquela serra se decidisse a comandar as nossas vidas e a fazer-nos mais pequenos também. Todas as nossas actividades, festas ou simples passeios numa noite quente de Agosto, estão condicionados a esse poder da natureza. A ciência explica este fenómeno, mas há quem lhes atribua outras origens.

Eu ainda acredito que aquele vento nos fez mais resistentes... e fortes. Também me fez apreciar mais as noites de Verão em que não se fazia sentir. As noites calmas, silenciosas. 

Aquelas noites em que, quando era jovem e nas conversas com os meus amigos, mantinha já os meus olhos sempre postos no horizonte. Sempre os tive lá. Sempre soube que aquele lugar era demasiado confortável para mim, e por isso sabia que haveria de ir à aventura e descobrir e viver outros lugares. 

Os anos passaram e eu cresci. Quando dei conta já tinha vivido em três países diferentes, e até numa ilha, tinha também já passado por tantas cidades e outras aldeias sobre as quais perdi a conta.

Mas havia sempre aquele lugar. O meu porto de abrigo, onde tantas vezes voltei e de onde outras tantas parti para mais uma aventura. 

A força para o fazer ia, claro, buscá-la ali. 

No sopé daquela serra, em noites ventosas ou não, encontrei muitas vezes a calma e as respostas às minhas dúvidas. Afinal de lá via sempre melhor as estrelas, naquele céu mais negro, e com elas conversava. Mesmo quando o vento uivava tão forte, era ali que agradecia sempre por poder voltar ao sítio que me tinha criado.

É claro que todos os sítios por onde passei acrescentaram algo ao meu ser. Mas este já vinha moldado dali. Foi ali que me criei. 

Levei algum tempo a entendê-lo. 

Mas neste dia, enquanto saboreava aquela azeitona, num gesto tão banal, senti o cheiro daquele ar puro, as cores da terra, os arrepios do vento e então soube que, por muito longe que esteja, aquele lugar estará sempre comigo.

Se em tempos achei que deveria ter crescido num sítio maior, hoje penso exactamente o contrário. E muito me orgulho de ter crescido na minha aldeia, pois só aquele pequeno lugar me deixou sempre ver o horizonte. Lá ao longe, a curiosidade, o querer mais, e uma terra distante onde quis chegar. O horizonte pode ser muita coisa, os nossos sonhos, as expectativas, mas também um engano ou uma ilusão.

Por isso aquele vento fez-me pequeno, mas mostrou-me o meu lugar. E mais do que isso, ensinou-me que haja o que houver, traga a vida o que trouxer, eu estarei sempre pronto para voltar a ser pequenino e recomeçar, sempre feliz de voltar ao meu ponto de partida.

O horizonte sempre lá estará à espera que eu o olhe mais uma vez, pois do cimo daqueles montes não há horizonte que se esconda nem vento que nos derrube. 

                                                                             - 

"Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte,

empurram o nosso olhar para longe de todo o céu..."

- Alberto Caeiro

"Fomos atingidos por um raio"

Filipe B., 18.01.21

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Depois de 6 meses sem voar (isto é... sem trabalhar) lá chegou a minha vez de regressar aos céus.

Era apenas o segundo dia deste novo ano e pareceu-me um início quase perfeito. Finalmente voltaria a trabalhar, ainda que só por dois dias. 

E foi no primeiro voo Berlim - Nápoles que tudo aconteceu. 

Sabíamos já que na descida para Nápoles iríamos encontrar uma tempestade. Esse tipo de informação é sempre discutido nos nossos briefings antes dos voos, pois assim estamos preparados e sabemos bem o que esperar. Entre nós (comissários de bordo) e os pilotos manter uma boa comunicação é essencial e, felizmente, neste dia foi exactamente o que aconteceu.

Primeiro deixem que vos diga. Voar sobre uma tempestade, tendo a oportunidade de a observar com calma, é das coisas mais bonitas que o meu trabalho me oferece. Assustador, mas bonito. 

Chegada a hora de aterrar, sentei-me no meu lugar. Nesse dia estava a trabalhar na frente da cabine com a minha supervisora, que já conhecia bastante bem de voos anteriores. Agora deixem-me que vos explique algo só para que entendam melhor (procurarei não ser muito técnico). Nós temos um procedimento que se chama "30 Seconds Silent Review" e que consiste basicamente nisto: uma revisão rápida sobre a minha saída de emergência mais próxima, qual a porta pela qual sou responsável, que equipamento de segurança/primeiros socorros tenho mais perto e posso levar comigo em caso de evacuação de emergência, etc, etc. Esta revisão é feita em silêncio, mesmo antes da aterragem. Fazêmo-lo em silêncio de forma a não disturbar o colega que está ao nosso lado (cada um tem responsabilidades diferentes já pré-definidas para estes possíveis cenários).

E foi neste momento de silêncio que ouvimos um estrondo tão forte que fez o chão aos nossos pés tremer, ao mesmo tempo em que uma luz (um flash) invadia a cabine e nos deixava completamente atónitos. 

"Fomos atingidos por um raio" - dissemos ao mesmo tempo um ao outro. E automaticamente a minha mente passou daquela simples revisão para uma preparação muito mais profunda do que poderíamos ter que fazer nos nomentos seguintes. 

Os aviões estão preparados para serem atingidos por raios (vou poupar-vos aos pormenores técnicos). Mas há raios e raios. E cada incidente terá sempre os seus detalhes. Neste caso o raio atingiu-nos directamente no nariz do avião (daí o estrondo ter sido tão intenso lá à frente!) e causou estragos significativos. Por exemplo, o radar metereológico ficou inoperacional. Máscaras de oxigênio caíram. Só para terem uma ideia do choque que foi.

A aterragem correu bem, mas não vos vou mentir. Já tive uma aterragem de emergência antes, já tive um passageiro que quase morreu a bordo, um desvio devido a emergência também, mas cada caso é um caso, e mais uma vez, por uns segundos, veio-me aquela dúvida: irá correr tudo bem?

Sejamos sinceros, nós estamos lá para nos certificar disso, e estamos mais do que preparados para o fazer, mas há coisas que fogem ao nosso controlo. Aterrar sem o radar metereológico, a meio de uma tempestade, depois de termos sido atingidos por um raio, não nos pareceu algo muito fácil de controlar.

Mas lá tocamos o chão em Nápoles. O resto da história são horas eternas à espera de respostas dos engenheiros que incansavelmente fizeram tudo para se certificarem dos estragos que aquele raio tinha afinal causado. Era um dia em que iria trabalhar apenas umas 7 horas, mas acabámos por andar nisto tudo durante quase 17 horas. Obviamente, aquele avião já não podia voar de volta para Berlim e só muito mais tarde pôde vir outra equipa para nos resgatar (a nós e aos nossos passageiros). 

O bom disso tudo é que tivemos de deixar o aeroporto durante umas horas (acrescente-se a isto tudo todas as limitações que o covid nos tem imposto...), e assim lá conseguimos encomendar umas pizzas napolitanas (as melhores do  mundo) e uns doces italianos, que nos ajudaram a aguentar a espera e o extremo cansaço. 

Nisto devo sublinhar o seguinte. Todos os meus colegas nesse dia, do cockpit à cabine, passando pelos engenheiros e segurança, foram absolutamente tudo aquilo que eu podia esperar de um colega de trabalho nestas condições: comunicativos, tranquilos, profisionais, e acima de tudo, um apoio essencial nos momentos em que o corpo já queria ceder ao desgaste.

Sendo assim, não trabalhei no dia seguinte. Nestes casos é nos atribuido um dia de descanso, até porque quando finalmente aterrei novamente em Berlim já eram umas onze da noite e o dia de trabalho seguinte começaria ainda de madrugada. 

Agora um pormenor engraçado. Nápoles é a minha cidade italiana favorita em Itália. Já lá estive umas quatro ou cinco vezes. No ano em que vivi em Itália, fui lá duas vezes e depois voltei praticamente todos os anos seguintes. Isto só podia ter acontecido ali. No meio desta turbulência toda ainda tive uns momentos para reviver um pouco do espírito tão único desta cidade. Sei que isso me trouxe boas energias de que tanto precisava para este início de 2021.

Agora digam-me lá, se souberem, qual é a probabilidade sermos atingidos por um raio em pleno voo?

Há coisas que... só o Destino.