A aldeia
A vontade de escrever este texto veio-me enquanto comia uma azeitona.
Pode parecer algo estranho, mas acho que concordarão comigo se vos disser que os sabores e cheiros são das coisas que mais avivam a nossa memória... e as saudades.
Acontece que essa não era uma azeitona qualquer, mas sim um dos frutos das oliveiras da fazenda da moita. Quando as colhi, no mês de Outubro passado, não imaginei que, ao trazê-las para Berlim, estaria a carregar comigo uma espécie de fruto mágico que me transportaria até ao meu lugar de origem.
Mas a verdade é que aquele sabor tão único, que só aquela terra lhes dá, foi o suficiente para me levar lá, mesmo que não tenha saído da minha actual cidade.
A aldeia onde eu cresci fica no sopé da Serra d'Aire. É um lugar pequeno, onde no Verão se levanta um vento tão forte que quase nos rebaixa, como se a imponência dos montes daquela serra se decidisse a comandar as nossas vidas e a fazer-nos mais pequenos também. Todas as nossas actividades, festas ou simples passeios numa noite quente de Agosto, estão condicionados a esse poder da natureza. A ciência explica este fenómeno, mas há quem lhes atribua outras origens.
Eu ainda acredito que aquele vento nos fez mais resistentes... e fortes. Também me fez apreciar mais as noites de Verão em que não se fazia sentir. As noites calmas, silenciosas.
Aquelas noites em que, quando era jovem e nas conversas com os meus amigos, mantinha já os meus olhos sempre postos no horizonte. Sempre os tive lá. Sempre soube que aquele lugar era demasiado confortável para mim, e por isso sabia que haveria de ir à aventura e descobrir e viver outros lugares.
Os anos passaram e eu cresci. Quando dei conta já tinha vivido em três países diferentes, e até numa ilha, tinha também já passado por tantas cidades e outras aldeias sobre as quais perdi a conta.
Mas havia sempre aquele lugar. O meu porto de abrigo, onde tantas vezes voltei e de onde outras tantas parti para mais uma aventura.
A força para o fazer ia, claro, buscá-la ali.
No sopé daquela serra, em noites ventosas ou não, encontrei muitas vezes a calma e as respostas às minhas dúvidas. Afinal de lá via sempre melhor as estrelas, naquele céu mais negro, e com elas conversava. Mesmo quando o vento uivava tão forte, era ali que agradecia sempre por poder voltar ao sítio que me tinha criado.
É claro que todos os sítios por onde passei acrescentaram algo ao meu ser. Mas este já vinha moldado dali. Foi ali que me criei.
Levei algum tempo a entendê-lo.
Mas neste dia, enquanto saboreava aquela azeitona, num gesto tão banal, senti o cheiro daquele ar puro, as cores da terra, os arrepios do vento e então soube que, por muito longe que esteja, aquele lugar estará sempre comigo.
Se em tempos achei que deveria ter crescido num sítio maior, hoje penso exactamente o contrário. E muito me orgulho de ter crescido na minha aldeia, pois só aquele pequeno lugar me deixou sempre ver o horizonte. Lá ao longe, a curiosidade, o querer mais, e uma terra distante onde quis chegar. O horizonte pode ser muita coisa, os nossos sonhos, as expectativas, mas também um engano ou uma ilusão.
Por isso aquele vento fez-me pequeno, mas mostrou-me o meu lugar. E mais do que isso, ensinou-me que haja o que houver, traga a vida o que trouxer, eu estarei sempre pronto para voltar a ser pequenino e recomeçar, sempre feliz de voltar ao meu ponto de partida.
O horizonte sempre lá estará à espera que eu o olhe mais uma vez, pois do cimo daqueles montes não há horizonte que se esconda nem vento que nos derrube.
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"Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte,
empurram o nosso olhar para longe de todo o céu..."
- Alberto Caeiro