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O blog do Fi

um português em Berlim

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2020, 2021. Desafios. E desejos.

Filipe B., 29.12.20

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Indivíduos. Pessoas.

Quis fazer um levantamento sobre o que passou e o que estará para vir.

Não lhes dou nomes, idade ou género, pois sei que cada um de nós se poderá identificar em algumas destas palavras. 

Perguntei-lhes:

Qual foi o teu maior desafio em 2020?

E um desejo para 2021?

Duas perguntas simples, mas que deram espaço a respostas tão variadas.

De entre quem respondeu, quero no entanto dar alguns detalhes: há quem viva em Portugal, há quem esteja no desemprego, há quem viva no Reino Unido, há quem estude, há quem viva na Alemanha, há quem trabalhe na aviação, há quem trabalhe no sector do turismo, há quem seja operário, há quem seja profissional de saúde, há quem esteja empregado mas sem trabalhar nas condições anteriores à pandemia, há quem viva em Espanha, e há ainda quem tenha tido uma sobrecarga de trabalho.

Só isto nos dá uma ideia da variedade de cenários e pessoas que se deixaram partilhar aqui.

Mas quais foram então os maiores desafios deste ano? E que desejos figuram no horizonte do ano que está para vir?

O primeiro testemunho chegou-me assim:

"O meu desafio foi aprender a viver a dois em confinamento". Um desejo para 2021? Não pede nem escreve muito: "Ser feliz"

E a segunda partilha não esteve muito longe da primeira: "Em 2020... desafiante foi manter o equilíbrio emocional. Não o perder é o desejo para 2021."

A falta de certeza em relação ao futuro dominou, sem qualquer admiração, muitas das mensagens que recebi.

"O meu maior desafio pessoal foi saber lidar com a incerteza do futuro, o desconhecido em relação ao vírus e da sua forma de transmissão, a solidão, o estar longe da família sem saber quando seria a próxima vez que os poderia abraçar. Foi (não) saber lidar com a frustração da procrastinação. Saber que tive um ano de 'folga' e não o aproveitei para aprender alemão."
 
E se me permitem, neste pedido tão especial deixo o género revelar-se e já vão perceber porquê:
 
"Desejo para 2021... Além da saúde para os que me são queridos, poder viajar, conhecer o mundo, crescer.
Se gostaria de conhecer alguém, ser amada, ser mãe?... Era fixe - seria um sinal de que a vida realmente está a avançar mas... Zero expectativas... que de desilusões já estou eu bem munida!"
 
E como foi este ano para quem trabalhou sempre na área do turismo?
 
"Pessoalmente o desafio foi encontrar outras opções profissionais...
E um desejo é saúde e que este ano seja melhor que o anterior... enfim, o costume. Ah e que acabe o vírus e possamos voltar à vida normal, claro."
 
Mas nem só o covid nos limitou este ano, certo? Há quem tenha travado outras grandes batalhas...
 
"O maior desafio foi estar 3 meses limitada, devido a um grave acidente de trabalho, e precisar da ajuda de alguém para praticamente tudo.
 
Em 2021 gostaria de... viajar livremente".
 
...e que grandes batalhas (conselho: respirem fundo antes de ler o que se segue).
 
 
"2020 foi... lidar com a incerteza do futuro e da própria Vida. Aprender a encarar o sofrimento e mortalidade com naturalidade. Definir prioridades, deixando tudo em standby para me focar na saúde. Aceitar que precisamos uns dos outros e aceitar essa ajuda, não como sinal de fraqueza mas de coragem.
Desejo para 2021? Vencer a batalha contra o Cancro, recuperar a minha saúde e independência. Finalmente aproveitar ao máximo a dádiva da Vida com a família, os amigos, partilhar paixões e sonhos adiados, VIVER de facto. Bónus: Dar muitos abraços."
 
Mas algumas dificuldades atingiram-nos no mais básico das nossas vidas, em coisas que antes tínhamos como garantidas.
 
"O maior desafio foi não poder dar um beijo/abraçar.
Um desejo é  que tudo isto passe o mais rápido  possível e que todos fiquemos bem e de saúde".
 
"Para mim foi estar fechada e não ser consumista. O meu desejo é poder pegar no carro e ir onde me apetecer sem medo".
 
"Comprar casa durante o covid foi um desafio.
2021? Desejo encontrar a minha alma gémea (para não falar na eliminação do vírus)".
 
"Desafio deste ano? Voar novamente.
 
Desejo? Não peço muito...".
 
"O maior desafio foi manter-me activo e confiante no meio desta pandemia toda! Mas foi bom pois tive ajuda dos amigos. Um desejo pra 2021: que o covid não apanhe os meus amigos e familiares".
 
E há quem prefira não revelar os desejos, não vá isso trazer má sorte depois de um ano de intenso trabalho...
 
"O meu desafio em 2020 foi estar à beira de um burnout (esgotamento profissional).
 
O desejo não posso contar."
 
 
"O que é que não foi um desafio este ano?
Houve um choque incial a meados de Março quando parámos de voar e começamos a ver o número de casos a aumentar diariamente. Era tudo novo, de repente, acabou-se a viagem planeada a Viena e a Berlim; tudo fechado, excepto o essencial, usar máscara, não usar, usar outra vez. 'Vai ficar tudo bem!' 
Depois a ansiedade nos últimos meses por ver a industria da aviação a desmoronar-se e colegas a serem despedidos e pensar quando será a minha vez, chegará a minha vez?! 
Mas sem dúvida o desafio maior para mim foi e vai continuar a ser durante alguns meses mais, a privação de liberdade, de repente deixar de poder fazer o que queres, VIAJAR sem pensar em restrições, ver a familia sem pensar em contágios, ir ao cinema, ir a um concerto, sei lá... coisas simples. A nossa realidade e vida alterada subitamente e de forma drástica. 
Apesar de tudo tive pessoas próximas que tiveram desafios mais pesados, desafios daqueles que põe a vida em risco e te fazem questionar muita coisa, e agora cada vez que penso em queixar-me de alguma coisa lembro-me da situação dessas pessoas e prefiro calar e penso no velho ditado que diz:
 
'Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe'.
 
Quero voltar a voar e ter saúde para viajar muito".
 
E tu, encontraste os teus desafios e os teus desejos aqui?
 
Eu sim. Nem precisei de os escrever pois, na recolha que fiz, encontrei-me tantas vezes naquelas palavras.
 
No fundo somos todos isto. Bocadinhos de nós ali, bocadinhos do outro aqui.
 
E talvez seja por isso mesmo que ainda cá estamos. 
 
Bom 2021!
 
 

 

O abismo

Filipe B., 23.12.20

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Tinha sido um dia completamente normal. Tinha passado uma bela tarde de Verão com alguns amigos no parque. Regressei a casa de noite, não muito tarde. Ia dormir e até já estava a sentir qualquer coisa estranha em mim, mas foi no exacto momento em que abri a cama, para me deitar, que vieram os tremores, o aperto no peito, a sensação de não controlar nada e acima de tudo o ver-me diante do abismo, um precipício tão fundo e o meu corpo ali suspenso... e inexplicavelmente um medo tão angustiante como nunca antes tinha sentido: o medo de morrer. Foi aí que soube o que estava a acontecer.

Tinha-os estudado muitas vezes: os sintomas. Tinha-os decorado para o meu trabalho, não só porque estes saíam nos exames de primeiros socorros, mas porque a qualquer momento algum passageiro poderia passar por isso e eu teria que saber responder. Mas foi em mim que o vivenciei pela primeira vez. 

Foi aí que soube o que era, realmente e na sua totalidade, um ataque de pânico.

E é horrível. Não há outra palavra. É uma sensanção horrível. 

Deixei-me ficar até aquela sensação desaparecer. Pensei em algo positivo, algo bom que tivesse onde me agarrar e nem me lembro de adormecer ou se sequer cheguei realmente a dormir.

No dia seguinte estava já a marcar uma nova consulta com uma terapeuta. 

Anos depois, tantos anos depois, voltaria sentar-me com uma psicóloga. E é por isso que aqui venho escrever isto hoje.

Porque o estigma existe, porque o medo de falar destas coisas não nos deixa abrir e conversar sobre elas. 

Nunca tinha tido um ataque de pânico, mas não me admirou que este viesse, por tudo o que este 2020 me fez e nos fez passar. 

No meu caso, o medo constante da perda de trabalho (que até já relatei aqui ), os números, os números, as constantes alterações à nossa vida social, e os números, os números, o receio de apanhar esse vírus que anda à solta (e que por acaso depois até entrou em minha casa, também já aqui vos contei sobre isso), e os números, os números novamente, o afastamento da família, dos amigos... enfim... da vida normal ou banal que levei anos a construir e que noutras sessões de terapia aprendi a ter como meu porto seguro. 

Acontece que essa segurança desvaneceu-se quase por completo este ano. Tive que a reencontrar... e por vezes até reconstruir. 

E embora não me tenha surpreendido este ataque, surpreendeu-me mais ter acontecido num dia que até foi um dia feliz, em que nada de extraordinário aconteceu. 

Terá sido essa ilusão de ter tido nesse dia um dia semelhante à vida pré-covid que me levou ali ao abismo? Terá sido essa falsa impressão de conforto que me levou ao medo de perder tudo outra vez?

Talvez nunca encontre realmente as respostas a estas questões, mas elas ajudam-me a tentar entender o que se passou... e o que poderá voltar a passar por aqui.

Embora ache que nunca se falou tanto de saúde mental, com tantas campanhas e divulgação, e sobretudo num ano que mudou todas as regras do jogo e nos obrigou a olhar para dentro de nós próprios e levantar tantas questões, mais uma vez deixo um apelo.

Falem destes asssuntos, deixem-se a vocês próprios e aos que vos rodeiam suficientemente à vontade para não se sentirem julgados por precisarem de ajuda e terapia.

Por cá continuarei a minha luta, por vezes só (que também se faz), por vezes escrevendo para vocês aqui, por vezes falando com os meus, por vezes naquela sala em que me sento só eu e a minha terapeuta e o abismo se abre mais uma vez profunda e continuamente, só que não para o mal, mas para o bem. 

Berlim, meu amor

Filipe B., 17.12.20

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Hoje é o meu último dia deste ano em Berlim, antes do meu merecido regresso a Portugal.

Tenho muito a agradecer a este lugar por tudo o que cá vivi neste 2020, por isso tirei uns momentos e, antes de sequer fazer a mala, saí para a rua e caminhei aqui por Prenzlauer Berg, o meu bairro. 

Prenzlauer Berg tem vida, tanta vida que nunca pára... ou nunca parava, porque este ano parou. Lá nos distantes meses de Março e Abril, o primeiro lockdown foi assustador. Lembro-me de estranhar o silêncio da minha rua, uma das maiores e mais movimentadas avenidas de Berlim. Recordo bem o não sentir as bicicletas passar, de ver o tram ir vazio e olhar para os restaurantes e bares de luzes apagadas. Agora vivemos o segundo lockdown aqui e parece que recuamos no tempo. Cheguei a achar que não iria aguentar uma coisa destas, estando sem trabalhar, entregue à monotonia e ao silêncio que obrigava, por vezes demais, a uma reflexão tremenda. E fui abaixo várias vezes. Então não fui? Mas quem é que não foi, este ano?

Só que houve sempre algo que me trouxe ao de cima. 

Imagina viver na tua cidade favorita. É o meu caso. E foi por isso que aguentei. 

Não vivo aqui exactamente por ter escolhido. Embora pudesse ter sempre recusado, parece que foram várias jogadas do Destino que me trouxeram aqui.

Foi amor à primeira vista. Lembro bem a minha primeira noite aqui, sozinho, naquele Novembro gelado de 2018, quando vim para a minha entrevista de emprego. Soube logo que ia ficar, mesmo que não fosse nesse trabalho, teria de ser noutro porque o chamamento era assim tão intenso. 

Em Abril de 2019 já cá morava. De início achei que podia ser só um deslumbramento por algo novo, mas pouco a pouco fui percebendo que este era o meu lugar. Às vezes sinto que Berlim esperava por mim.

Berlim não tem filtros. Podes ser o que tu quiseres, podes ser o mais banal ou o mais radical, e ninguém quer saber. 

Foi nesse espectro que me encontrei. Foi aí que encontrei a minha paz e todos os lugares, alguns secretos, onde posso ir e não ter medo de nada. 

Neste 2020 que tantos desafios nos trouxe, agradeci imensas vezes por estar num sítio que verdadeiramente amo, e nem consigo imaginar o que aconteceria se estivesse, como já estive, num lugar onde apenas estaria só por estar, sem qualquer conexão emocional.

Tenho o hábito de falar com os lugares por onde passo. Chamem-me maluco, mas acho que as cidades nos ouvem e sentem. 

Hoje disse-lhe "Obrigado, Berlim, meu amor... pela Força que me deste". E despedi-me até 2021.

Quis perguntar-lhe se por acaso sabe o que me reserva esse futuro, mas acabei por não o fazer. 

Quando lá chegar, saberei, da mesma forma que o soube assim que aqui cheguei.

 

Dos pesadelos

Filipe B., 06.12.20

Talvez porque também sou irmão, senti um aperto no coração e a pessoa de que me lembrei primeiro foi o David. Não precisa de sobrenome. Esta família, goste-se ou não da música, cresceu connosco e é o espelho de muitos de nós, e isso cria uma proximidade muito maior, como se fosse nossa família também. Fico triste quando vejo pessoas a criticar quem partilha agora palavras de conforto. Claro que não os conhecemos pessoalmente. Mas que humanidade é esta que vê mal nesta partilha de sentimentos? E quero acreditar que toda a gente sentiu pelo menos qualquer coisa ao ler uma notícia tão trágica... Claro que mexe connosco, da mesma forma que casos mais próximos de nós também o fazem. Todos somos filhos, alguns de nós são pais e mães, são irmãos e irmãs... e quem não pensou nos seus num momento destes? Ninguém merece passar por uma coisa destas. Mas nós que cá ficamos, podemos pelo menos tentar aprender e, se nada de positivo tivermos a acrescentar, então podemos ficar em silêncio e respeitar. Não é o momento para críticas e piadas de mau gosto. É um momento de reflexão.

Na terra e no céu

Filipe B., 04.12.20

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"(...) ver os aviões levantar voo

A rasgar as nuvens

Rasgar o céu"

 

Nunca esta música dos Azeitonas me deixou tão melancólico. Explico porquê. 

2020 tem sido... bem... 2020. E os últimos meses têm sido uma luta constante no que diz respeito ao meu emprego. Desde Julho que não voo. E reparem: não disse trabalhar. 

Quando escolhi ser comissário de bordo, não o fiz só pelo dinheiro, mas porque ainda antes de a ter já sabia que ia apaixonar-me por esta profissão. E assim foi. Claro que me deu uma maior estabilidade financeira, mas mais do que isso deu-me o conforto de ir trabalhar feliz e orgulhoso do que tinha conquistado (não pensem que o curso que fazemos é pêra doce!).

Este ano mudou tudo e, arrisco-me a dizer, o sector do turismo foi o mais afectado. E sem turismo, como sobrevive a aviação por estes dias?

É óbvio que quem viaja não o faz só por lazer e, sim, nós temos muitos passageiros business. Mas com tantas restrições nas viagens, até isso foi por água abaixo.

Os despedimentos foram inevitáveis, não digo o contrário.

Mas não desejo a ninguém o que passámos nos últimos dias. Sabia que as cartas de um despedimento em massa iam chegar nesta semana. O primeiro aviso caiu quando uma colega me escreveu "Chegou a minha carta, fui despedida". E a partir daí choveram mensagens, despedidas e apertos no coração. Mal dormi no primeiro dia, fui ver a caixa do correio já nem eu sei quantas vezes nos dias que se seguiram (às tantas já era automático), e por fim os dias foram passando e tinha terminado. Tinha terminado! As cartas pararam de chegar e eu fiquei.

Sobrevivi.

E acreditem que é essa a expressão que usamos quando nos dirigimos a colegas com a preocupação de saber se ficaram ou se vão embora. "Sobreviveste?".

Obviamente que fiquei aliviado, mas não deixa de ser um contentamento agridoce, pois tenho que me despedir de tantas pessoas que realmente estimo e que fizeram ainda melhores os meus dias no trabalho. Por outro lado sei também que isto me dá só mais uns meses de alívio e que no próximo ano, conforme a situação global avançar, isto pode melhorar ou piorar. Seja como for, já nada será igual. E o meu maior medo agora é perder aquele gosto que tinha quando ia voar.

E reparem. Não disse trabalhar. 

Espero com todas as forças que esta turbulência passe, que isto melhore e que tudo fique bem (afinal andamos desde Março a dizer que vai ficar tudo bem, não é?).

A esperança, essa, ainda voa.