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O blog do Fi

um português em Berlim

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Premonição ou determinação?

Filipe B., 25.03.17
Siena e Firenze, as últimas cidades que por lá visitei em 2016.

Durante o meu Serviço Voluntário Europeu em Itália, de Outubro 2015 a Agosto 2016, andei sempre com o meu pequeno bloco de notas atrás e nele escrevi muitos pensamentos, que hoje são memórias da magnífica viagem que foi este projecto. E nem sempre é fácil voltar a ler algumas linhas e recordar-me de que isso de facto... acabou. Mas há uns dias reparei em algo bastante curioso ao reler as últimas páginas do bloco. Escrevi isto no penúltimo dia que passei lá, nos derradeiros momentos desta minha experiência, envolto na tristeza de terminar... mas já aí havia uma voz que me dizia mais qualquer coisa. Isto foi uma premonição ou já uma prova da minha simples determinação?


"8 de Agosto de 2016, Florença


A felicidade pode afinal ser algo tão simples como estar agora sentado no chão frente ao Palazzo Pitti sem saber que horas são, esquecido do tempo. E é também estar agradecido e dizê-lo várias vezes em voz alta ao passar e ao repousar-me nas ruas e praças de Firenze (Florença). Amanhã volto a casa feliz e completo, pois vivi de tudo aqui, vi de tudo, e por cada pormenor mínimo me apaixonei. 
Falo de toda a Itália, claro, mas Firenze é, acima de todos os sítios onde estive, o maior espelho que reflecte toda a sabedoria e plenitude de ser que aqui conquistei. Eu amo-te, Itália minha, e quero que nunca me deixes, que sempre me acompanhes em todas as estradas, pois de ti eu recebi só energias positivas e muita Força. E porque o amor pode também ser projectado para um lugar, na personificação perfeita de uma existência feita de viagens, descobertas e sentires novos, transformadores, enriquecedores de uma vida que quis mudar-se para melhor. 
(...) E com o pôr do Sol estou cada vez mais perto do  fim da minha jornada em Itália. Tristeza e alegria misturam-se, como o dia e a noite, enquanto entro no crepúsculo da fantástica e espectacular viagem que foi o meu Serviço Voluntário Europeu. Mas tenho que dizer isto: sinto mesmo que este ainda não é o meu fim com Itália. Há qualquer coisa que me diz que a minha existência aqui ainda vai ter outros capítulos. E não me refiro só a voltar aqui em visita..."


É curioso que cheguei ao final desse bloco de notas exactamente no último dia (o seguinte), mas deixei propositadamente a última página em branco, apesar de ainda ter mais para dizer, porque na altura pareceu-me apropriado deixar como que uma porta aberta, não colocar um Fine demasiado forte.

Lá no céu está uma estrela

Filipe B., 23.03.17
"un po' di pace che duri un eternità"
"um pouco de paz que dure uma eternidade"


Era muito pequeno. Talvez tivesse uns cinco anos. E por essa altura os meus pais puseram-me no Centro no Pedrógão, naquilo que era o que hoje chamamos jardim de infância. A verdade é que, por algum motivo, detestava ir para lá. 

Ainda tão criança... mas já achava ter uma ideia muito própria sobre aquilo de que não gostava. E foi nessa contrariedade de não querer estar ali que descobri que até naquilo de que não gostamos podem haver momentos que nos trazem alegria e conforto. A meio da manhã chegava alguém que me fazia sentir melhor. Lá vinha o avô trazer-nos chocolates, tornando logo mais afável o dia e criando assim um bom motivo para lá ficar.

Esta memória é seguramente das minhas primeiras, das mais fortes. As outras crianças penduravam-se na rede que nos protegia da rua e admiravam-se com aquele senhor que ali vinha dar-nos doces. Lá vinha o Chico Bita. E era o meu avô. Meu. E na minha percepção, mais ninguém tinha um assim.

Por trabalhar ali, na distribuição do pão, era-lhe fácil passar por lá e mimar-nos com aqueles pequenos gestos. Mas eu não tinha noção disso e para mim ele era simplesmente o melhor momento dos dias que custavam a passar no Centro. 

Nessa altura perdi o meu outro avô, o materno, e disso tenho poucas memórias, pois não teria ainda a carga emocional suficiente para entender que tipo de perda era essa, não sabia que coisa má era a morte ou por que não se podia viver para sempre junto dos nossos.

Ao crescer, passando por diversas fases da vida, fui perdendo mais pessoas próximas. E a cada perda já sabia sentir verdadeiramente que tipo de vazio nos ficava. Afinal... não podia ser para sempre aquela criança que ansiava por ver o avô chegar para lhe alegrar as manhãs. 

Passaram muitos anos. Estava já na casa dos vinte, muito mais perto dos trinta, e diante de mim tinha o meu avô sentado no pequeno sofá da sala. Nesta altura ele já não via, pouco falava, pouco conseguia perceber do que se passava à sua volta. Nesse dia estava a dar-lhe de comer alguns pedaços de fruta e ele já nem sabia dizer-me se comia maçã, pêra, laranja... Os papéis tinham-se invertido, agora era eu grande e ele "pequeno", limitado pela doença que o derrubou. Quando lhe perguntava, dizia sempre que era bom, mas nem sempre sabia dizer-me o que era. E para ele estava sempre tudo bom, nunca tinha frio ou calor, nem sede, estava sempre tudo bem, mesmo quando nada estava certo. Foi assim que várias vezes dei por mim a engolir em seco, a disfarçar as lágrimas, que ele afinal nem conseguiria ver, mas que não me pareciam apropriadas. 

Ele estava ali, mas muitas vezes já nem sabia quem era. 

E no entanto houve um dia em que estávamos os dois à lareira e eu, conversando com o meu pai, perguntei que caminho devia tomar para chegar a uma terra que ficava para os lados de São Mamede. Sem sequer hesitar, o avô começou a falar e deu-me todas as indicações, que sabia ainda de cor. Por onde era mais perto, por onde era mais longe, por esses caminhos onde andara ele durante muitos anos. Ninguém os conhecia melhor. 
Isto mostrou-me que então lá no fundo ele ainda sabia tudo, que às vezes esquecia, que nem sempre conseguia chegar àquelas memórias da sua vida, mas a prova estava ali. A prova de que o nosso ser é tão complexo como os problemas que nos assolam e de que, nessa complexidade, tudo o que nós fomos e fizemos permanece como um vinco forte. 

Mais tempo passou. 

Fui vê-lo ao hospital. Falei-lhe, perguntei como estava, não me respondeu. Perguntei se queria água, aí disse-me que não com a cabeça. Falei-lhe mais. Falhou-lhe o meu pai, a minha mãe, mas nunca tivemos uma resposta. E deixei-me ficar ali ao lado, com a certeza de que já pouco poderíamos esperar. O tempo tinha de facto passado, e tão depressa, que custava a crer que já não podia ser aquele menino que não sabia o que era o medo de ver alguém partir.

Ao despedir-me, já nem esperando alguma reacção, toquei-lhe na mão e disse "Avô, vou embora...". Senti então a sua mão ganhar força, a apertar-me para não me largar, vi uma lágrima correr-lhe pela face. E assim deixei-me ficar mais algum tempo, sabia que novamente ele tinha percebido e recordado algo no meu toque e na minha voz. E momentos desses já não aconteciam tantas vezes como nós queríamos. 

A mão que eu segurava era a do meu avô, mas a minha mão, que ele não queria soltar, não era só a minha, era a dos seus filhos, da sua filha, dos netos, das netas e de todos os que de uma forma ou de outra tinham cuidado dele e assim lhe pertenciam em amor. Éramos nós todos quem ele procurava naquele aperto, como que a dizer-nos que sabia perfeitamente quem ali estava. 

Da mesma forma nós também não queríamos vê-lo ir, não queríamos nunca ter que largar a mão de quem nos deu e ensinou tanto. 

Mas até aí temos afinal muito que aprender. É nesses instantes em que tudo termina que conseguimos realmente perceber aquilo por que temos de estar gratos.

Por isso mesmo ontem revivi estas memórias. E se chorei, ao mesmo tempo sorri e agradeci

O corpo definha, a vida foge-lhe, acaba-se. Mas a alma e as recordações são eternas. Estas viverão para sempre, nas nossas palavras, e nos momentos que lembraremos ao longo do tempo. E mesmo quando também nós chegarmos ao fim, outros ficarão cá para contar as nossas histórias, como a do avô que levava doces aos seus netos na singela simplicidade de só os querer ver felizes e contentes. 

[ opinião - cinema ] A Bela e o Monstro

Filipe B., 19.03.17


O filme cumpre com o seu maior propósito, o de trazer uma vaga de nostalgia aos adultos e jovens adultos que cresceram a rever repetidas vezes aquela velhinha cassete VHS do clássico original de 1991. 

Foi por isso mesmo que assim que a primeira cena começou dei por mim a fazer força para não deixar correr aquela lágrima no canto do olho... 

E nem preciso de descrever em detalhe todas as emoções e arrepios que passaram por mim ao ver a Emma Watson descer aquela escada naquele vestido amarelo que durante anos e anos fez parte da minha infância. 

Mas antes disso, já no intervalo, dei por mim a não gostar muito de certos aspectos do filme. E refiro-me mesmo a aspectos visuais. Os efeitos especiais digitais (e o CGI) aparecem em exagero a nível dos cenários. Atenção que não me refiro aos personagens "objectos", que obviamente tinham de ser assim animados. Falo mesmo de certas cenas em que é demasiado evidente que os actores "reais" estão a representar diante de um ecrã verde. O problema é que aos cenários falta alguma profundidade e mais detalhes, mais... beleza? No mesmo campo, não gostei do aspecto geral do Monstro, porque faltava-lhe ser assustador e ter mais expressão. Estamos em 2017, já evoluímos tanto nesta arte, mas essa evolução parece não ter passado por aqui.

E nas questões técnicas, fico-me por aí.

O filme brilha nas partes em que é literalmente um remake quase frame por frame do original, mas fiquei também muito satisfeito com as adições que foram feitas à história, com novas músicas, novos locais e pequenos detalhes que aprofundam a relação dos personagens principais. Há até alguma modernização, em que a Disney (finalmente!) nos trouxe abertamente um personagem gay (e outro trans?), sem esquecer ainda alguns ideais sobre a liberdade feminina muito bem colocados na personagem Belle (e tendo em conta que a feminista Emma Watson é quem lhe dá vida, isto deixa-nos ainda mais espaço para reflectir).

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Quando o bullying homofóbico destrói

Filipe B., 16.03.17


Este é um excerto do Deixa-me ser, o livro biográfico que conta toda a atribulada história do meu coming out

Este texto foi lido em todas as apresentações que passaram pelo Porto, Leiria, Torres Novas, Tomar, Covilhã e Lisboa. Escolhi-o sempre para ser lido em voz alta porque é dos meus momentos preferidos do livro, mas é provavelmente também aquele que mais me custou escrever.  Hoje partilho-o pela primeira vez online, como forma de alerta para algo que destrói, que corrompe e mata: o bullying.



"Verão, 2014.
    
         A cidade onde nasci tem um castelo. Lá no alto de uma colina de Torres Novas erguia-se a majestosa construção aos meus olhos desatentos. O olhar caía-me ali mas os pensamentos estavam em plena viagem temporal pelos caminhos da minha infância. O café arrefecia-me e o gás de uma água já morna desfazia-se por entre o seu lento borbulhar. Viajava. Estava ali, fisicamente, mas o meu espírito cedia a outro daqueles momentos em que as memórias se intensificavam, como certezas de que nada vivido poderia ser completamente esquecido, como um chamar dos ensinamentos que a bem ou a mal tinha adquirido. 
        Nessa tórrida tarde de Agosto a  máquina do tempo decidiu-se a parar algures nos 90, na época em que era ainda um rapazinho. Ia a esse pedaço de recordação mais vezes do que quereria e, uma vez estando lá, não tinha como fugir-lhe. Por isso, cerrando as pálpebras e suspirando, deixei-me viver novamente aquele trauma. Eles eram uns quatro ou cinco e rodeavam-me, mais velhos do que eu, mais fortes e com mais certezas de como devia ser a vida. Eu era um miúdo, fraco de corpo, incapaz de integrar-me nos seus modos, por isso atiraram-me para o chão e ameaçaram pontapear-me. Um deles, nem sei já quem, fez sinal para que parassem a violência explícita, para que avançassem apenas com as palavras, como se estas magoassem menos.
        'Gay!'
        'Maricas!'
        'Menina!'
        Chamaram. Repetiram.  Tornaram a chamar.
E depois o meu quarto, as paredes fechadas sobre mim, e uma criança que chora sozinha. Nem entendia porquê, que mal tinha feito ao ser diferente. E ganhava agora vergonha, tornando-me indefeso, impossibilitado de levantar-me e falar com um adulto sobre isso. Dentro de mim havia medo, apenas medo. Provavelmente se falasse com os meus pais, iriam até dar-lhes razão, se era assim o mundo dos grandes, se era só eu quem não sabia expressar-me como eles esperavam, se era eu quem queria brincar com o que não devia e não tinha pudor em tocar nos brinquedos das meninas e torná-los parte dos seus mundos inventados. 
       Palavras, palavras. Não machucavam, pensavam eles. Palavras, palavras. Seriam suficientes para mudar-me, queriam eles. E estas ecoavam, esmurravam-me, atiravam-me ao chão vezes e vezes sem conta. E mesmo quando queria deixar de as ouvir, elas lá estavam graves e agudas, a baixo som, em gritaria, escritas, faladas, em todos os modos e feitios. Então descobri, escreveria. Se não as podia vencer, podia usá-las a meu favor. Até podia transformá-las, inventar-lhes interpretações, torná-las secretas em algum diário que só eu saberia ler. Bastava-me uma caneta e um pedaço de papel. Escrevia, escrevia, e escrevendo fui sonhando. Haveria um lugar para mim nesse mundo em que uma maioria tinha escolhido odiar quem não tinha alguma vez optado por nascer assim numa qualquer oposição do normal. Senti que descobriria alguém que me amasse, que brincasse comigo, que não perguntasse porque era assim, que só quisesse um amigo sem se interessar tanto porque seria ele desigual. 
     E encontrei. Foi exactamente ao recordar os amigos que tinha feito ao longo de tantos anos que aquela lágrima escorreu pela minha face com a mescla de mágoa e alegria de quem não podia apagar o passado e de quem agradecia pelo seu presente. Essa mesma gotícula  carregava em si tantos significados que num só momento ser-me-ia impossível decifrar toda a sua importância, o que levou a que mais uma vez fechasse aquela porta, até lá regressar um dia. Fi-lo hoje, voltei lá com toda a minha força, ao querer, neste último capítulo da história que te vim contar, uma prova de que aquilo a que agora chamamos bullying sempre existiu, mesmo quando não sabíamos dar-lhe um nome inglês que lhe acentuasse a gravidade. Dessa opressão moral, praticada por quem nem sabia atribuir-lhe um valor, vários choros foram e são  derramados, vincando as faces com o peso de todas as injustiças que são ditas e proclamadas em nome de um sentimento que se alimenta do puro ódio de não entender o que não consegue ser igual ao estabelecido padrão."


Livro disponível aqui no Amazon
Página no facebook.


Registo da apresentação do livro na Covilhã, aqui rodeado de amigas que sempre me apoiaram em tudo.

DEIXA-ME SER: memórias do lançamento do livro em Leiria

Filipe B., 15.03.17


Venho partilhar algumas curiosidades. 21 de Outubro de 2016. Festa de lançamento do livro no Royal Club Leiria. Antes dessa primeira apresentação estar agendada, tinha já marcado fazer uma tatuagem nesse dia de manhã. Por acaso coincidiu que a data só podia mesmo ser a mesma. Na noite de 20 para 21 devo ter dormido umas 3h no máximo, de tão ansioso que estava. De manhã lá fiz a tatuagem, que para mim significava a marca definitiva sobre o meu Serviço Voluntário em Itália (que tinha terminado há 2 meses) e ainda o símbolo da poderosa ligação que tenho à minha irmã (nessa manhã ela tatuou as mesmas palavras). Pareceu-me apropriado que tal marca se desenhasse exactamente no dia em que ia dar início a uma nova fase da minha vida com o novo livro. Depois disso ainda fui trabalhar, cheio de dores nas costas (das picas da agulha). 

Saí do trabalho às 23 e tal e tinha que estar no bar em menos de 1h, por isso fui directo para lá. No caminho senti várias vezes que ia perder as forças, porque mal tinha dormido, mal tinha comido, tinha corrido para o trabalho, e lá estava eu a correr novamente. Tinha preparado um discurso muito bonito sobre as questões LGBTI que o livro aborda e no entretanto... esqueci-me de tudo. Ao chegarmos, diz-me a minha mana: "Põe-te lá aí para testarmos a luz para as fotos". 

Lá me pus, segurando a bandeira... ao contrário (como se vê aqui na foto). Daí a pouco tempo teria que começar a falar para todas as pessoas que lá estavam e sinceramente achei que não ia conseguir. Os abraços apertados que ia recebendo lá me traziam a recordação da tatuagem acabada de fazer, lá me traziam aquela dor aguda de quem carrega numa ferida aberta. E isso, talvez porque seja masoquista, fez-me rir. Depois o Dj de serviço disse-me que ia por a tocar as músicas que eu tinha escolhido para a festa. Começa a tocar "Oops! I did it again", a voz da Britney trouxe-me memórias de outros tempos, e então tive a certeza de que já nada me parava. Pouco depois, a minha irmã colocou-se ao meu lado e juntos iniciamos uma das noites mais memoráveis da minha vida. <3

A frase recém tatuada no meu corpo dizia "For my ally is the Force and a powerful ally it is", trazudio dá algo como "Porque minha aliada é a Força e uma poderosa aliada esta é". 

E palavras mais certas não poderiam ter sido escritas. 

Logan: complexo Wolverine

Filipe B., 06.03.17


Atenção aos SPOILERS!

Isto não é uma crítica ao filme, mas antes uma análise mais profunda sobre o que este Logan desafiou em mim enquanto grande fã.

Dentro das publicações, das séries animadas e do cinema da Marvel, os X-men sempre foram o meu grupo preferido. E dentro dos X-men o meu favorito sempre foi o Wolverine. Foi assim desde que me lembro de ser criança e de seguir religiosamente na tv a X-men Animated Series dos anos 90. Mas essa relação intensificou-se quando aprendi a ler e quando me apaixonei pelos comics dos mutantes, que a minha mãe me comprava. Crescendo, fui sabendo mais sobre este misterioso personagem, fui lendo histórias mais pesadas, mais humanas e mais violentas (em vários sentidos), que já eram compradas por mim. Com o passar dos anos o Wolverine tornou-se um reflexo atormentado, o personagem negro e torturado, evidenciado aquela falta de complexo realismo que muitas vezes os personagens da banda-desenhada não tinham. 

Quando no ano 2000 os X-men chegaram ao cinema, admito que senti um pouco de desilusão na forma como o Wolverine tinha sido retratado. O aspecto cool do personagem estava lá, as garras (obviamente) também, mas não estava tudo. Depois seguiram-se mais 2 filmes que completaram essa trilogia, dando-lhe mais densidade. Tivemos ainda um terrível primeiro filme solo dele, que só se aproveita porque efectivamente o Hugh Jackman é um grande actor. E de um cameo no X-men: First Class, passámos a ter cada vez mais qualidade nas suas histórias que passaram por The Wolverine, X-men: Days of Future Past e Apocalypse

Ninguém achará assim estranho que se olhe para ele como o foco central de todos os X-men.

Mas, para mim, continuava a não bastar, tinha que ir mais longe. E o que nos fazia falta era mesmo este derradeiro filme, o Logan que todos merecemos ao fim de 17 anos a acompanhar o Wolverine de Hugh Jackman no grande ecrã. 

A profundidade existencial está lá. E disso eu não tinha já dúvidas quando me sentei para o ver na sala de cinema. Os trailers e entrevistas apontavam claramente para este desvio ao lado mais cruel do mutante, mas nunca esperei que fossem quebradas tantas convenções do género em que, ainda assim, o filme está pela sua natureza inserido: o género de super-heróis. 

Logan foge tanto a esse tipo de cinema que na primeira hora pode ser facilmente inserido na categoria dos western modernos. O tormento, a solidão e a falta de esperança estão lá, num cenário ríspido e seco que não foi escolhido ao acaso. 

Na forma de nos revelar o seu argumento este filme é tremendamente inteligente, nunca seguindo pela facilidade de contar demasiado sobre o passado. Sabemos que o professor Xavier causou uma suposta extinção de quase toda a espécie mutante, sabemos que não nascem novos mutantes, mas ninguém nos faz um flashback a explicar-nos exactamente como e porquê. Fica-nos o peso, a angústia de queremos saber mais. E é assim que a produção joga connosco e nos transporta para o universo que está a ser retratado. O espectador quase que sente a mesma impotência perante esse acontecimento. 




É assim que seguimos até ao grande final, sempre envoltos num certo mistério que aos poucos vai ganhando respostas. A relação com Laura (a X-23) cresce de forma tão intensa que custa a crer que ela só nos foi apresentada agora. Quando os personagens vagueiam de um ponto para o outro, quando as cenas de perseguição fazem rebentar o ritmo, quando chegam a um local mais tranquilo e os vilões parecem ter sido deixados para trás, em todas as cenas há uma maravilhosa direcção técnica, de arte e fotografia a mostrar-nos que não, este não é o nosso típico filme de super-heróis. 

Há mais atenção aos detalhes humanos dos personagens, há uma positiva demora que os deixa respirar e ser, que os apresenta vagamente e com calma aqui e ali em cenas que pedem mais à nossa interpretação do que só aos nossos olhos. Há mais entrega a uma cena em que, por exemplo, a banalidade de se partilhar um jantar com uma família que se acaba de conhecer é tratada como um dos pontos altos de uma história que traz consigo (e bem!) tanta violência física explícita.

Quando o filme terminou é claro que chorei. Não só porque vi morrer o meu amigo Wolverine, não só porque sei que lhe disse adeus (para já), mas porque foi aí que tive a certeza absoluta de que estava perante um dos melhores filmes de sempre. Os créditos começaram a rolar e eu fiquei sentado, imóvel, não porque esperava alguma cena pós-créditos (até já sabia que esta não existia), mas simplesmente porque não conseguia levantar-me, tal era a carga emocional que me pesava. 



Só para tentar explicar melhor a minha opinião mais geral, não tanto de fã digamos assim, vou dizer isto. Em 2016, a exemplo, adorei o Batman V Superman, adorei o Doctor Strange, gostei do Civil War e amei o Deadpool e o Rogue One. Destaco só alguns filmes daquilo que considero o meu lado geek. Desse mesmo ano, apesar de os ter apreciado mesmo muito, nenhum destes filmes entra na minha lista de TOP 10 dos meus favoritos. Na minha vida geral, no que não toca só ao tal lado geek, consumo muitos outros tipos de cinema mais independentes ou menos mainstream. Adoro o cinema italiano e francês, por exemplo. E mesmo o cinema americano deu-me filmes extraordinários, cuja qualidade ultrapassa todos estes que nomeei. Quer isso dizer que gosto menos deles por isso? Não. Estes ocupam lugares que estimo muito dentro dos seus géneros. Só não posso ser fã extremo para dizer que um Doctor Strange pode ser tecnicamente e qualitativamente equiparado a um Manchester by the sea. Não posso medi-los com os mesmos instrumentos e pesos, pois estaria a ser injusto.

A grande diferença chega agora. Este Logan passou para o outro lado dessa luta, colocando-se à mercê das mesmas tais medidas que avaliam o grande cinema, pois não me restam dúvidas nenhumas de que este será um dos meus favoritos na lista de 2017 (e ainda mal começamos o ano!)

Sem exagero algum, o Logan é uma obra de arte que merece destaque nas maiores premiações do cinema mundial. Imaginemos que teria saído em 2016, juntamente com todos os outros que referi, e facilmente concluímos que este faria parte da lista dos principais nomeados aos Oscar. Não, não é uma hipérbole! Veja-se este como um filme comum, afastado das obrigações de um género,  e logo se repara que o objectivo aqui foi ir muito mais além, explorando um guião muito bem escrito numa tentativa, conseguida, de ter uma alma muito própria.

O tempo, elemento que é afinal a principal base desta obra, sim, o tempo tratará de nos dizer em que medida esta veio revolucionar o próprio género de heróis (e anti-heróis). O tempo tratará também de nos relembrar que todas as fórmulas de êxito têm um fim e que não se tem de ser demasiado pop ou cool ou fun para darmos a um personagem a vida e morte que ele buscava há muitos, muitos anos.