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O blog do Fi

um português em Berlim

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um português em Berlim

Por que nos perturba tanto o silêncio?

Filipe B., 09.01.25

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Algo que adoro aqui na Alemanha é a cultura das saunas. Cedo me habituei a frequentar esses lugares aqui em Berlim. 

A sauna é um lugar de repouso, calma...

Mas por que é que a nós, latinos e povos do Sul, incomoda tanto o silêncio?

Não é a primeira vez que acontece, mas ontem foi demais. 

Fui ao ginásio e depois à sauna que faz parte do complexo. Mal entrei, tinha um casal de espanhóis a falar já bastante alto. E, ainda por cima, o tema da conversa estava mais para conversa de bar do que de lugar onde vamos para relaxar, se é que me faço entender...

Depois entra um italiano com um amigo e, como os outros já falavam alto, o volume só aumentou. O teor da conversa também não melhorou. 

Estão dois espanhóis, entra um português, depois um italiano... parece o início de uma anedota e bem que podia ser.

Por que nos perturba tanto o silêncio? É o medo de estarmos sozinhos com os nossos pensamentos e termos que os assumir?

Não é que seja proibido falar na sauna. Nada disso. Também já fui com amigos e é normal trocar umas palavras, mas assim num volume baixo e com respeito.

Há pessoas ali que literalmente estão a praticar meditação. Também já o fiz. E recomendo.

Mas nós, os da parte Sul da Europa ou sulistas, como dizem os alemães, temos no geral uma aversão qualquer ao "não falar".

Eu que sou um tímido de natureza então, quando confrontado com pessoas tão expansivas, fico mesmo tocado com tanta ousadia. Admito que às vezes sinto um pouco de inveja por não ser capaz de desligar a auto-consciência e simplesmente aproveitar como eles. 

É que ontem, lá na sauna, não foram poucas as pessoas a manifestar desconforto perante tanto barulho no pequeno espaço abafado, e nenhum deles deu conta disso...

A conversa continuou alta e disparatada, como num bar. 

 

autor da imagem: Alan Levine/pxhere.

O Japão é um sonho

Filipe B., 02.12.24

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Aterro em Tóquio de manhã cedo.

Ainda nem saí do aeroporto de Narita e já a cordialidade dos japoneses entra em contraste com a Alemanha fria e cinzenta que deixei para trás.

No controlo de passaporte sou recebido e encaminhado com uma doçura que talvez não esperasse num passo tão técnico da viagem e, logo aí, sinto o meu sorriso abrir-se numa leveza de aqui estar.

Mais de uma hora depois, atestando a enormidade desta cidade, chego ao meu hotel na zona de Hatagaya (curiosamente conhecida pelos seus restaurantes chineses), deixo as malas e saio para a rua movimentada. Vou comer japonês, apesar de os restaurantes da vizinha China serem também atraentes (e os japoneses adoram). É a minha primeira vez aqui, por isso atiro-me à minha primeira sopa miso em território japonês e a um prato de arroz com ovos e cebolinho, cujo nome desconheço. Sei que é delicioso. 

A 20 minutos de autocarro deste restaurante, espera-me Shibuya. Pelo frenesim das suas ruas, é o local perfeito para me manter activo e combater o jet lag das 13 horas de vôo (com mais 9 horas de diferença no horário).   

Estou noutro mundo. Tudo brilha, pisca e cintila à minha volta. Parece o futuro, uma sociedade avançada. Os prédios gigantes e cheios de ecrãs imensos dão-me uma vibe cyberpunk. Cenário de filme. Mas em todas as interacções lá está o calor e educação dos japoneses, bem distante da frieza dessas sociedades fictícias. 

Começo, timidamente, a soltar os meus arigato com a pronúncia ainda ao lado, mas vou ganhando confiança de cada vez que algum local sorri ao ouvir-me tentar a sua língua musicada. Algo que, em muitos anos de vida em Berlim, nunca senti nem do povo nem da língua alemã. Embora não queira, é impossível não cair nestas comparações logo nas primeiras horas.

O cansaço da longa viagem começa a fazer-se sentir e a refeição do jantar, um bem composto prato de ramen noutro restaurante que me transportou para os universos literários (realistas) de Murakami ou Yoshimoto, dá-me aquele conforto necessário para lentamente me deixar adormecer na cama pequena do hotel.

A meio da noite, ainda fruto do jet lag, acordo convencido de que já é manhã alta. Confuso, acho que estou na minha casa em Berlim, e sinto-me alguns momentos nessa névoa. Só quando me levanto para ir à casa de banho deste apertado quarto e vejo outra vez a sanita futurística e cheia de tecnologia e botões variados, é que me lembro de que estou em Tóquio.

Sorrio ao espelho, achando-me um pouco tonto pela falta de clareza. E então reparo. O meu olhar, embora cansado, parece-me mais vivo, menos cinzento, brilha como os ecrãs de Shibuya.

E então sei que é real.

O Japão é um sonho.

E eu não quero acordar. 

E em breve o Japão

Filipe B., 15.11.24

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Daqui a uma semana estarei já no Japão!

Começo, lentamente, a aceitar esta realidade, mas acho que só acreditarei mesmo quando abrir os olhos em Tóquio.

Foi tudo planeado só em Setembro, assim mesmo à última da hora.

No dia seguinte à marcação do vôo, corri para uma das minhas livrarias preferidas aqui em Berlim e comprei 5 livros de 5 autores japoneses. Todos de épocas diferentes, todos com a sua temática. Uns clássicos, outros mais modernos. 

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Os livros que comprei (em inglês):

Norwegian Wood - Murakami.

Kitchen - Banana Yoshimoto.

Before the Coffee Gets Cold  - Toshikazu Kawaguchi.

Strange Weather in Tokyo - Hiromi Kawakami.

The Sailor Who Fell from Grace with the Sea - Yukio Mishima. 

 

E neste último mês já li 4 destes livros para me preparar para a viagem. Só me falta ler o "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar" de Yukio Mishima. Talvez seja a minha companhia na viagem para a terra que lhe deu vida, o Japão.  

Podia ter comprado guias de viagem, mas haverá melhor forma de conhecer um país do que através da voz dos seus autores?

O curioso caso do Five Guys

Filipe B., 11.11.24

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Sabem quantos restaurantes Five Guys temos aqui em Berlim? Cinco! 

Sabem quantas vezes lá fui? Uma. 

Vivo cá há 6 anos.

Fui dessa vez. Há uns 2 anos. E não detestei. Até gostei do sabor do hambúrguer e das batatas. Mas ficou-me mais na memória a experiência ao fazer o pedido do que propriamente o sabor da comida.

Acho que outro problema aqui é que há casas de hambúrguer mesmo muito boas, em cada esquina e ao mesmo preço. Adoro os Burgermeister, por exemplo. Um destes, no louco bairro de Kreuzberg, foi em tempos uma casa-de-banho pública, antes de ser convertido em restaurante. Peculiar e um dos meus favoritos. Os sinais de homens/mulheres ainda lá estão bem visíveis.

Mas o Five Guys em Portugal, seja no meu grupo de amigos ou nas notícias dos nossos políticos e celebridades (primeiro o Pedro Nuno Santos em Espanha, depois o Goucha em Itália), faz correr muito comentário. 

É que em Portugal ainda não existe um Five Guys. Nem um, quanto mais cinco.

E este parece mais um daqueles casos em que o hype vem todo do entusiasmo/ansiedade de ainda não se ter algo. Como não há, está longe, pouco alcançável, torna-se mais apetecível.

É um restaurante bom, naquilo a que se propõe, mas de onde vê toda esta euforia?

Já Variações explicava:

"Esta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perder

Porque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vou"

Uma das grandes leituras deste ano: Filhos da Chuva!

Filipe B., 07.11.24

Filhos da Chuva - Alvaro Curia.pngPrimeiro, uma confissão.

A leitura inicial deste livro não me cativou. Achei que as partes iniciais talvez precisassem de uma escrita mais limpa e ligeira, o que não significaria tirar-lhe valor. Quem está habituado a ler Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe e companhia, sabe bem do que falo. Ainda sobre isso, não invejo o trabalho que deve ter sido essa tarefa de nos apresentar a complexidade de Domínio assim logo de repente e em poucos capítulos.

Esta leitura foi uma sugestão da minha amiga Sandra Barbosa, do programa Páginas Soltas. Apenas me disse: "Tens de ler o Filhos da Chuva de Álvaro Curia. Vais adorar". E ela conhece-me e aos meus hábitos de leitura tão bem, que a sua vaga mensagem foi suficiente para me fazer continuar. Sabia que, depois desta sugestão, algo haveria ali para mim. De resto, já seguia a página de Instagram há anos e a existência desta obra não me era estranha.

Foi por volta da página 60 e no capítulo 6, se não estou em erro, que este livro se transformou aos meus olhos. Foi nesse contar da relação meio trágica meio possessiva de Mãe e Filho que me vi obrigado a fazer uma pausa e deixar-me ficar só no sofá a processar a leitura. Sem que o esperasse, estava já submerso nas águas deste livro.

A partir daí foi uma sucessão de textos de uma sensibilidade, beleza e brutalidade incríveis. José Luís Peixoto diz na capa de Filhos da Chuva: "Há vida aqui". E eu digo: Há talento aqui. Um talento e técnica que poucos têm. Há mestria e há alguém que lê muito, condição que sempre disse ser essencial a quem quer escrever.

Fala-se muito de ler os nossos, os autores nacionais, os portugueses, mas não se fala o suficiente do elogio que raramente é feito. Não se fala de quanto nos acanhamos em elogiar só porque é nosso e porque pode parecer exagerado lisonjeio.

Que este seja feito sem amarras, quando merecido.

E foi por isso que precisei de me sentar e escrever realmente sobre o que acabei de ler. Há passagens e personagens que levarei comigo o resto da vida. Há o Filipe menino estranho (queer), filho, amor, que se encontrou nestas páginas sem nunca o esperar (e agradeço por ter sido mantido esse mistério ou por eu nunca ter lido sobre ele antes de pegar no livro).

E há um nome, Álvaro Curia, que me fará querer ler qualquer livro seu.

Conseguir isso com um primeiro livro é obra.

Os prémios MTV das eleições

Filipe B., 06.11.24

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Não me admirava nada de que a Kamala ter feito das últimas semanas os prémios MTV VMA das eleições tivesse tido um efeito contrário, ter feito pior.

Gaga, Beyoncé e mais, mulheres que muito admiro, estão ainda assim muito longe da realidade do povo (são milionárias!).

O que interessaria à vida da minha avó se a Deslandes ou a Tinoco fossem apoiar um candidato aqui?

Gostaria de as ouvir cantar, certamente. Mais nada.

Só Almodóvar!

Filipe B., 05.11.24

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Fui ver o filme O Quarto ao Lado (The Room Next Door) ao City Kino, um dos cinemas de bairro que ainda passam filmes menos comerciais aqui em Berlim. Por estes dias, estes lugares são um verdadeiro tesouro e tenho a sorte de ter o City Kino mesmo aqui no meu bairro.

Este filme ganhará muitos prémios. Aliás, ganhou já o importante Leão de Ouro no festival de Veneza.

Eu nem sabia do que o filme tratava. Vi que era do mestre Almodóvar e pronto. 

Fui surpreendido com uma reflexão muito bonita, mas nada lamechas, sobre a luta contra o cancro e o direito a morrermos com dignidade.

Brutal e genial. Como só ele.

Niguém saiu da sala até acabarem os créditos. Dava para sentir o peso da reflexão.

A minha única dúvida agora é: a Julianne Moore e a Tilda Swinton poderão concorrer na mesma categoria nos Óscares?

 

 

O estar longe

Filipe B., 05.04.24

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No momento em que soubemos que o pai teria de fazer quimioterapia, o meu voo para Berlin partiria daí a 2 horas.

Tinha entrado com ele naquele hospital, esperado com ele por aquela consulta, e o tempo parecia acelerar e só aumentava o medo de que tivesse que deixá-lo sozinho por ter de correr para o aeroporto.

Era uma manhã bastante cinzenta em Lisboa. Nem o cenário lá fora me ajudava. Quando me preparava para descer e ir embora, o médico chamou-nos. Entrei e ouvi tudo calado. Senti esperança, não sei bem porquê, mas não senti a angústia que esperava.

Daí a uns minutos já o nosso carro voava por uma avenida qualquer em direcção ao aeroporto. Despedi-me com o abraço forte de sempre. Não, este não foi diferente. Passei a segurança, pouco seguro, mas com tranquilidade. Quando aquele avião descolou, só me apetecia, não sei como, agarrar-me à terra e impedi-lo de sair dali. Aí sim, caíram-me lágrimas tão pesadas, talvez pela pressão, pela gravidade.

Depois cheguei a casa. Berlin e o meu ninho aqui. Entrei tranquilo, já longe, mas sabendo que era pelo melhor. Sabia que a minha vida aqui me permitiria dar-lhe mais, se necessário.

Não muito tempo depois, chegou-me o convite para o novo trabalho, novo curso, nova estrada. Sozinho, questionei-me várias vezes se conseguiria, se mentalmente estaria no lugar certo. Mas lá fui. Durante a formação, eram mais as vezes em que contava os minutos para lhe poder ligar do que aqueles em que conseguia concentrar-me na matéria. Como estás. Já comeste. Como foi hoje. Está tudo bem. Vou estudar. Vai comer. Tenho de estudar. Não te esqueças. Vai comer qualquer coisa. Outra vez.

E a certa altura já se misturavam as mensagens e os papéis de pai e filho. Na última semana do curso, recebemos os dois boas notícias. Eu passei e ele fez o último tratamento. Se vos disser que soltei um suspiro tão grande que tremi, não é exagero. Acho que sustive esse suspiro durante este tempo todo. Senti o meu corpo relaxar, amolecer, e nessa noite dormi como não dormia há muito tempo.

Quando acordei, tudo continuava igual, só a nossa proximidade era maior, embora os quilómetros nunca tivessem diminuído entre nós.

Natal não é bem isto

Filipe B., 26.12.23

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O meu Natal, desde que cresci para lá da minha zona de conforto e me pus a correr o mundo, passou a ser muito diferente daquilo que tinha sido ensinado sobre o que significava celebrar estes dias.

Em vários anos, por culpa do trabalho na aviação, passei-o literalmente nas nuvens, a voar bem lá em cima, a levar pessoas de um lado ao outro, juntando famílias e amigos enquanto eu próprio ficava longe dos meus. Nunca me arrependi de me voluntariar para trabalhar nesses dias (a empresa dava-nos essa opção) e, como havia colegas que tinham fillhos pequenos e tal, não me custava abdicar disso, sabendo que outra pessoa podia aproveitá-lo melhor. Guardo até memórias bonitas desses voos (sobretudo quando os passageiros nos traziam chocolates, pastéis de nata, cartões com mensagens bonitas e mais...).

Antes disso, quando participei no projecto de Serviço Voluntário Europeu em Itália, já o meu Natal tinha sido bem diferente. Éramos voluntários. Não tínhamos muito dinheiro. Então eu e mais duas voluntárias, sozinhos na noite de 24, fomos ao supermercado e comemos uma pasta barata com pesto e mais um panettone gigante que estava em desconto. Soube-me pela vida. Ensinou-me a valorizar o pouco. O dia 25 passei-o sozinho, mas tranquilo, e a fazer a mochila para viajar para Florença, onde cheguei no dia 26 (em Itália ainda se festeja esse dia). Fiquei num hostel baratinho, partilhando um quarto, não comi uma única vez em restaurantes para poupar dinheiro, e hoje é das minhas melhores memórias da época. Quem já esteve em Florença, saberá bem porquê...

Em 2018, já a trabalhar na aviação, calhou-me não ter de voar nesse dia. Fui, com mais duas amigas portuguesas lá da companhia áerea, servir à mesa na consoada para os sem-abrigo e idosos que não tinham família em Frankfurt (onde morava na altura). No meio de centenas de pessoas que lá estavam a jantar, encontrei um velhote português que vivia lá sozinho. Emigrante na Alemanha há muitos anos, viúvo, longe dos filhos, acabara por ficar só naquela noite e juntou-se à celebração. A alegria dele quando nos ouviu falar português... e as histórias que nos contou, tão bonitas, tão nossas, encheram-me o coração.

Este ano consegui vir passá-lo cá a Portugal. Mas vou ser muito sincero, esta quadra aqui deixa-me sempre um sabor agridoce. Aqui, na ânsia de fazer tanto e fazer mais que toda a gente e mostrar que se tem uma mesa cheia de extravagâncias, fazem um stress e barulho tão grande com mil pratos e mil doces que só não me tiram a alegria toda porque sou um guloso e essa capacidade de me isolar no meu mundinho daquelas memórias anteriores ainda está bem viva.

Este foi também finalmente o ano em que não comprei presentes. Zero. Nos anteriores ainda ia comprando para os putos, pais, mana. E adoro oferecer. Mas irei fazê-lo noutra data. Foi uma sensação de liberdade.

Por outro lado, desta vez consegui estar o mês de Dezembro todo em Portugal (já tenho saudades da minha casinha em Berlin, confeso) e consegui acompanhar o meu pai numa operação, nas visitas ao hospital, na sua doença, idas ao médico, fazer-lhe a comida, levá-lo à fisioterapia, passar horas a falar com ele, pôr-lhe os cremes na cicatriz a ver se se vai embora mais depressa, deitá-lo confortável e quentinho na cama. Enfim, simplesmente cá estar.

E acho que o maior presente este ano foi mesmo esse: estar presente.

O nosso tio João

Filipe B., 05.12.23

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Há algo de devastador em fazer uma viagem de milhares de quilómetros para chegar à adeia, a casa, e ouvir apenas o silêncio.

Foi avassalador entrar hoje na casa do tio João e não o encontrar lá. Sentei-me no banquinho de madeira onde sempre me sentava quando a gente se punha a falar. E assim fui vendo e revendo todas as suas criações expostas naquelas paredes, as figuras de madeira, os versos, os textos, as fotografias.

Na última vez que estive em Portugal fui fazer a visita habitual ao tio João. Lá estava a estante de livros que sempre me dá aquele conforto. O conforto que trazem as memórias das tardes da infância e adolescência, passadas ali, a escolher livros que levava para ler. Foi assim que me apaixonei pela leitura. Foi assim que lá descobri o meu refúgio. Foi assim que comecei a escrever a sério. Nenhum livro meu existiria se não tivesse existido primeiro o meu tio João.
 
Desta última vez, ao despedir-se de mim, disse-me ele: "Tenho muito orgulho no homem que te tornaste". E eu só respondi: "Tive um bom professor". Dei-lhe um beijo e um abraço. Depois subi a rua, até à casa dos meus pais, de lágrimas nos olhos. Sabia bem o que significavam aquelas palavras do tio. Sabia bem que o tempo tinha passado, que já não era o Filipe pequenino e inocente a escolher livros daquela estante. Sabia que a vida havia seguido o seu rumo natural e que eu algum dia haveria de não chegar a tempo de o abraçar mais uma vez.
 

Hoje o tio João já não está lá, mas tudo o que ele foi, a sua pessoa, está ali à vista de quem quiser ver. Um autêntico museu que não conta só a sua história, mas a de todos os que lhe foram contemporâneos.

E essa história não ficará por contar.

Aqui fica a minha promessa.

 

imagem: Pixabay, FelixMittermeier